“A utopia, seja ela o que tantos viram ou não no experimental
brasileiro, simplesmente transfigurada em atopia, deslocamento da retina, de
uma ótica cultural que imperou antes dele. Coube a Carlão deslocar (atopisar) o
experimental de seu terreno minado para a área de todos: não mais cinema de
minoria, mas de memória da minoria como
brinde à maioria. Maioridade de um tipo de cinema brasileiro? Superação dos
borrões, inauguração de uma nova écriture
que a massa come e que inquieta os cinéfilos? Quem está vivendo está vendo: a
solução do enigma sempre esteve no enigma – vi-vendo.”
(Jairo Ferreira – Cinema da Invenção)
Carlos Reichenbach é um homem culto. No sentido mais
culto do culto referido à figura humana - aquele que cultiva. Homem nascido
após Oswald de Andrade, o cineasta gaúcho é o antropófago moderno por
excelência - degluti o todo, sem preconceitos geográficos, morais ou estéticos.
Carlão é um verdadeiro glutão. Quimera de mil olhos, reteve (quase) tudo: de
Godard à Nouvelle Vague Japonesa, de Cinema Novo à Chanchada, de séries
televisivas à óperas, de Platão à Jorge de Lima, de Proudhon ao
Naziexploitaion... construiu o único olhar que pode valer algo: o seu. E é na
emoção de acompanhar as escolhas que gozamos do sentimento próprio da liberdade em ação ao assistir um filme
do Carlão. É um dos cineastas mais inspiradores dos que sonham fazer cinema
porque sentimos na eleição de cada idéia audiovisual o “homem instituinte” –
aquele que produz o efeito por uma “causa interior”, pelo puro “prazer
interno”, jamais para agradar ao instituído (aristocrático ou comercial). Não
obstante, não nega nenhuma instituição, antes joga com elas; o cinema, para ele
mais que para Glauber, são todos os caminhos (de produção, de estética – os princípios
éticos, inescapavelmente pessoais, resguardados). Vivenciou na pele todas as
dificuldades de fazer cinema no nosso país, e sempre deu um jeitinho
brasileiro; afirmar esteticamente sua condição e enfrentar em signo de invenção
os problemas como questões foi o maior deles. Não confundindo a questão ética
com a patética, vanguardeou, contrabandeou, sobreviveu, expressou-se (sob
quaisquer contextos). Hoje, junto com Julio Bressane, Andrea Tonacci e Eduardo
Coutinho forma a nata do cinema de
invenção brasileiro.
Seu cinema não aspira tão-somente à arte de justapor
imagens, movimentar encenações sob a lente, fazer grandes travellings,
enquadrar grandes cenas, aspira também à História (através da colocação do Mito
em ficções sombreadas por acontecimentos políticos), às Artes Visuais (com suas
paisagens e cenários, reveladores externos dos dramas de seus personagens, sem
esquecer das luzes e cores, sempre pontuações pictóricas impressionistas que
nos abraçam nos sentimentos “atmosfeéricos”), à Música (nunca gratuita, sempre
utilizada apenas como imprescindível, e muitas vezes engendrando a própria forma essencial de alguns de seus
filmes), à Poesia (transitando livremente do diálogo típico para os típicos
vôos líricos de seus personagens, buscando sempre a “palavra falada justa”, sem
concessões à preocupações medíocres de “verossimilhança naturalista”), à
Filosofia (referenciando, parafraseando, sublinhando, sobrepondo metafísicas,
morais, estéticas de grandes mestres e cafajestes). Carlão, pintando todo o seu
grande mural com cores advindas de tintas tipicamente brasileiras, colhidas da
vida que observou/vivenciou de perto/profundo, aspirou o cinema como panacéia
da síntese, e a síntese como o álibi para a busca da pureza. Chegar na alma
através dos “personagens familiares”, na política através dos “argumentos
situantes”, na cultura através das “referências decantadas”, na arte através da
“câmera~montagem & síntese-outras artes”.
Filme demência, anagrama para “filme de cinema”, é,
segundo o próprio Reichenbach, o seu empreendimento mais autobiográfico.
Exorciza nessa obra, sem disfarce, pormenores de angústias pessoais, com seu
pai e o seu país. Não obstante, o mais interessante, é que realmente, Filme
Demência, cristaliza a idéia de obra biográfica por excelência do homem Carlos
Reichenbach, justamente por ser este um “filme de cinema”. Acima de filho e
cidadão, vejo que o Carlão é mesmo um “bicho do cinema”, filho dele, cidadão
dele. Sua mente, sua demência, todo o seu ser é organicamente ligado, umbilicalmente,
a esta força; faz parte de sua essência enquanto homem: o cinema foi inventado
pelo homem, Carlos Reichenbach é um homem, logo Carlos Reichenbach foi inventar
cinema. Sua auto-biografia, seu testamento, sua imagem, não poderia ser outra
que não um “filme de cinema”.
Há diversos filmes por aí, poucos de cinema. Há
diversos filmes com grandes atuações, fotografias belíssimas, produções
milionárias, temas filosóficos contemporâneos pertinentes, poucos de cinema.
Assim como existem vários “filmeclubes” por aí: clubes onde pessoas se reúnem
para discutir filmes. “Cineclubes” existem muito poucos. Onde mora o cinema
então, materializado, se não no Filme?
Realmente, lá ele pode morar, e é onde mais o encontramos (apesar de
existir alhures); assim é com a Literatura no Livro ou a Pintura no Quadro. Mas
o Cinema de fato não é tão material assim, ele parte de um impulso, o impulso
do homem com a linguagem; e a linguagem do cinema, muitas vezes se esquece, é a
da imagem/som; é do impulso audiovisual
que a essência dá a luz a potência de matéria, o futuro-filme; quanto à forma,
há no cinema uma sintaxe, uma gramática e um vazio chamado possibilidade.
Carlos Reichenbach almeja em seus atos-filmes ser o maestro, que conjuga todos
os elementos visíveis e invisíveis, com o interesse não tanto de mostrar cada
instrumento de sua orquestra (fotografia, cenários, músicas, atores, idéias,
imagens), mas, com esse arsenal venusiano, adentrar a música silenciosa, a
estrela interna, que entre os planos, entre as harmonias som/imagem, entre a
ocupação do espaço de um quadro-movimento e entre as pulsões de um mundo
capturado para a ficção de um olhar, brilha como esse algo tão misterioso de
nome Cinema, que faz o homem errar na esperança de encontrar no fim uma
resposta (a estrada).
Filme Demência encontra a proposta de uma viagem, o
próprio reflexo que é livre: a imagem da filha (a inocência que foi perdida em
si, renascida no que fecundou). E eis o que é criar, e eis o sonho que é ver o
sonho de ver como somos vistos por nós quando adentramos o sonho que é se
admirar criando o sonho que é o cinema. Labirinto de várias formas oferecendo
viagens, Mefisto Fausto Criança Inferno Espelho Estrada Tempo Destino Vontade
somos nós
Filme Demência, o filme mais complicado de ser
produzido por Reichenbach, o de maior desespero existencial, o de menor
público, é de fato um objeto não-identificado, inspirado pelo surrealismo mais
lúcido, pela pesquisa mais embriagada, pela auto-psicanálise mais hermética,
pela vulgaridade mais desnudadora, pela ciência mais oculta, pela viagem mais
sem volta.
“Esse filme foi concluído graças à sua necessidade
intrínseca de existir”, disse o Carlão. E cada sessão de Filme Demência segue à
necessidade intrínseca dele exibir-se. Para utopia caminhamos, na alçada do cosmo,
nosso motor é a necessidade. MATADOURO propõe o renascimento, contínuo,
errante, amante, in-consequente. São estes gases, subterrâneos, mefistofélicos,
que desejamos inspirar; depois do véu, até o âmago, pro fundo. Escalemos o
mergulho.
Mateus Moura (APJCC – 2012)
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