terça-feira, 8 de maio de 2012

 
O cineasta do inefável


 “Um garotinho saiu para brincar./Quando abriu a porta, ele viu o
mundo./Quando passou pela porta.../Ele gerou um reflexo./O mal
nasceu./O mal nasceu e seguiu o menino.”


Essa pequena fábula sintetiza a trilogia de Hollywood iniciada em
“Estrada perdida" e seguida por  "Cidade dos sonhos" e "Império dos
sonhos".

 David Lynch foi  muitas vezes questionado se estava louco ou
simplesmente havia perdido o controle sobre os  filmes que fazia. A
aura do "sem pé nem cabeça 'cool'” estigmatizou sua obra por muito
tempo e seu nome virou sinônimo de estranhamento e esquisitice. Pouco
se fez para compreender o que realmente ele comunicava. Como seus
personagens, seu vocabulário é fragmentado, instiga uma agressividade
e insinua uma desconfiança, mas a matéria em que ele fez seus filmes é
orgânica e entra em choque com o público, o choque de admitir as mais
selvagens perversões, o choque contra a pureza consciente da
experiência "cinema" onde saímos impunes de qualquer mal que ocorra na
tela é violentamente sobrepujada pelo inconsciente, é como se perder
em um pesadelo que em algum ponto pode não acabar mais, uma realidade
alucinante e paradoxal, sua gramática é a dos signos visuais em estado
bruto. Lynch usa as imagens para mesmerizar o público.

A dialética hegeliana (tese, antítese e síntese) é um caminho para
“compreender” ou "estruturar" uma lógica ao filme. Lynch narra
estados, a desconstrução da narrativa ou dos personagens se faz menor
quando percebemos sua ressonância e reconstrução em nossa percepção.
Em todo os seus filmes ele tem uns "agentes infiltrados", guias,
personagens misteriosos que confundem o protagonista dando pistas
enigmáticas que como sementes vão se enraizando e posteriormente
revelam o inconfessável. O homem misterioso de estrada perdida lembra
a morte em "O sétimo selo" ou mesmo um Mefisto como o visto em "Filme
Demência" de Reichenbach, demônio tecnológico que transita nos
bastidores da malha onírica onde o filme se apresenta, consciente e
impune às transformações, representação do diretor e da sua
onipresença.
 

 A estrada que o filme sugere está repleta de "migalhas de pão" que
nos guiam na direção de uma resposta coerente / satisfatória. Mas a
proposta de Lynch também mostra que existem bifurcações e
encruzilhadas. É um caminho perigoso e sombrio e é nesta instabilidade
que repousa o verdadeiro domínio de David Lynch.

 A busca do público por uma explicação lógica ofusca a experiência
sensorial, quase transcendental que o "domador de formigas" (como o
próprio Lynch se intitula) reflete em nós. Logo o mal nasce e vai nos
seguir mesmo depois que a sessão acaba.

 Em 1977, Lynch fez "Eraserhead," seu primeiro longa metragem. Em
uma das cenas iniciais, a câmera entra em um planeta negro,
mergulha nas trevas mais obscuras que ali existem. Ainda hoje ao ver um
filme de Lynch, me sinto nesse planeta: como o pequeno homem disforme
em êxtase.

Max Andreone (APJCC 2012)
 

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