Só mente imagens
Texto para a sessão de “La nuit des traquées” de Jean Rollin
“O natural é tão falso como o falso. Somente o arquifalso é realmente real” (Rogério Sganzerla sobre José Mojica Marins)
Quem disse que a sensação ao ver um filme deve ser eternamente essa análoga à de acompanhar uma história como seguimos um romance em sua leitura e vê-la como sentimos o teatro em sua ação? Quem disse que a sensação não pode ser aquela análoga à da contemplação de uma fotografia de Duane Michals, ou à emoção de ouvir uma interpretação de Wes Montgomery, ou ainda o prazer de compreender um conceito desenvolvido por Immanuel Kant?
E por que tantas analogias com processos contemplativos de outras artes e saberes para falar de cinema? É por que parece ser o principal problema dos olhos presos: o condicionamento a uma forma engessada de contemplação. Isso é fruto de uma imposição de uma “monocultura Cinema Clássico”, do “latifúndio Hollywood”, ou de uma particular “preguiça ao novo”, de uma natural “repulsa ao marginal”? A culpa é de quem? O que importa é que os filmes de Rollin são litros do melhor colírio para a libertação dos olhos, e, logo, da imaginação.
Inspirado pelas histórias fantásticas de quadrinhos, as séries de cinema de aventuras, os quadros surrealistas e os pesadelos inesquecíveis de sua tenra infância, Jean Rollin legou o exemplo contundente de que a honestidade à invenção que ouvimos de nós mesmos é a maior herança que podemos deixar à humanidade.
Da gang dos cineastas “exploitation” - gênero de filmes de baixo orçamento que tem como principal característica o uso de apelativos comerciais como a violência gráfica e o erotismo exacerbado - saíram grandes cineastas, dos anos 70 até hoje, cineastas que atravessaram tais concessões para ressignificá-las esteticamente, atingindo o belo através da catarse da paixão corporal e da explosão dos sentimentos. Rollin, considerado “cineasta classe Z”, segue um caminho ainda mais tortuoso. Em seus filmes, cenas de violência ou de sexo existem aos montes, mas são cine-encenadas não com o interesse de deleitar, através da transparência do aparato, o espectador ávido para atiçar suas pulsões escópicas pervertidas; ele propõe a opacidade, o distanciamento, o olhar contemplativo para a condição de um ser e de um cinema. Pobre, Rollin não escamoteia os poucos recursos de sua produção, antes escancara... revela assim não o “tosco”, o “mal feito”, mas o “artificial”, o “verdadeiro”... nas cenas de sexo tudo é falso, escancaradamente falso, não lhe interessa que o espectador se envolva com o sexo sensualmente, mas enquanto imagem em construção; propõe um olho que lê, que tem consciência que sonha. Seus atores são amadores ou vem das fitas pornôs que realizava com pseudônimos para poder fazer seus filmes mais autorais. São, na verdade, antes de atores, modelos, e antes de modelos, corpos, e antes de corpos, imagens. Briggite Lahaie, sua vampira mais famosa, era vista por ele como uma “estátua viva”, ou uma “pintura viva”, não tanto uma atriz.
Rollin transgrediu tudo, mesmo convivendo no meio mais transgressor. No gênero horror transgrediu sua mitologia, criando posturas e relações inusitadas de personas como o vampiro e o morto-vivo; transgrediu também o tom, renegando os efeitos atmosféricos fáceis para causar medo ou repulsa, perseguindo acima de todos os tons o do feérico mistério – a essência da beleza do sonho; transgrediu também a representação naturalista ou clássica dos filmes deste viés, e abandonou qualquer explicação de traço psicológico para seus personagens ou condições de verossimilhança para seus enredos. Reinventou tudo isso, e ao invés de contar estórias mais filosofou acerca do sublime e da morte, assim também ao invés de pintar quadros figurativos mais coreografou música entre aparições de olhos e gestos de corpos.
Alguns cineastas atingem o cinema, outros partem dele. Jean Rollin, cinepoeta surrealista de primeiro time, AMADOR no sentido buñuelístico da palavra, faz parte dos que partem da essência. Se seu cinema é pouco reconhecido pela maioria do público e da crítica é porque este artista amou demais as imagens. Amou além de todos os vícios que o cinema engendrou enquanto cultura.
La nuit des traquées (As fugitivas). 1980
“O misterioso vírus que acomete os personagens de La Nuit des traquées (1980), extraindo-lhes a memória, é outro exemplo de desconstrução do gênero por Rollin. Filmado numa Paris entre a madrugada e o amanhecer, num imponente edifício comercial vazio, o thriller de perseguição que o título ("A Noite das Perseguições") sugere converte-se num poema visual entre o grotesco e o sublime, no qual as buscas dos protagonistas são “apagadas” constantemente, rompendo com o desenvolvimento narrativo convencional.” : Assim, o crítico paraense Adolfo Gomes - quem me apresentou o cinema de Jean Rollin -, descreve o filme. Adolfo considera o cineasta francês o “Brecht dos vampiros”.
“Era noite. Veronique estava nua. Ela me larga. Eu estou perdida na noite. Totalmente só. E depois, a luz como um trem. Enfim, é tudo.” Assim, tateando a mente, Elizabeth (Briggite Lahaie) persegue imagens.
No entanto, tudo só existe no instante. O resto é vago, é dubitável, é memória. Só o presente é real, só a duração é.
A fotografia capta um fragmento da realidade exterior, o cinema capta a duração de um momento (o presente em fluxo). E a obra, enquanto feérie, é a mentira enquanto realidade (ou a verdade da invenção); o cenário é “La Defense”, o principal prédio do maior centro financeiro de Paris. Ele se transforma na “Torre Negra”, onde zumbis transitam entre corredores. Paris se transforma num amontoado de torres. Da torre onde habitam esses seres se vê apenas o Arco do Triunfo como esperança.
Toda grande ficção científica é a metáfora clara extremamente enigmática da realidade que cerca a existência do autor. Fornos crematórios, trens-fantasmas, a angústia profunda da noite, a sensação de desorientação e da perseguição de forças burocráticas, os olhos vazios, os homem ocos, a higienização dos diferentes, a reação nuclear - toda relação que se possa fazer com a vida moderna não é mera coincidência.
Jean Rollin foi, no cinema, um dos mais originais arautos do insólito, do encantamento, do fantástico, do horror, do sonho/pesadelo. Foi também um dos mais honestos estetas, um apaixonado pela beleza das puras imagens. Filho do onírico, criado pelo bizarro, perseguiu o sublime. Não foi aceito pela cultura. Seguiu, rumo à arte. Como Robert, deixou-se conduzir pela musica dos violinos que só a trapaça das musas-vampiras pode escutar. “Se se portar bem, encontrará sua amada”, diz ela. Robert dança, Rollin dança.
E quando perdemos o senso do gesto, do equilíbrio, da imagem justa, quando o que nos ofereceram enquanto Beleza não encaixa à essência que escorre pela nossa imaginação? Aí é preciso reconstruir, instituir – nem para si, por soluções. É quando fechamos os olhos, olhamos a memória vazia, e inventamos imagens para poder ser enquanto linguagem. Imagens de um passado, um futuro? Apenas imagens. Somos vivos enquanto somos tomados pelas imagens, e quando apenas tomados pelas imagens – como quando vivenciamos a experiência cinematográfica - morto-vivos. Somos morte em vida, assistindo; acompanhando a morte como vida, na tela. A única coisa que existe é o instante presente. O imediato.
A última cena só pode ser comparada em beleza no cinema de horror na cena final de The Beyond de Lucio Fulci.
Ela caminha no trilho do trem, talvez atrás da primeira imagem que teve acesso durante o filme, quando Robert, com seus dois faróis, surgiu para resgatá-la da fria noite que é o passado (aquilo que não existe). Do trilho caminha para um grande portão de ferro, o abre, e começa a travessia da ponte. Ela não é mais humana, animal ou planta, se arrasta sem cérebro, alguma força a arrasta por aquele caminho, alguma força gera a imagem. Robert atravessa o portão, leva um tiro na nuca, e agora peregrina o caminho do além. No mesmo estado podem caminhar, sem precisar se lembrar do nome um do outro, nem outras convenções. Não há mais máscaras, identidades, angústias, doenças ou prazeres, apenas a eternidade, enlaçada pelas mãos.
Mateus Moura (APJCC – 2012)